segunda-feira, 17 de março de 2014

Dezenove de Março de 2014


No dia em que a equipe do Dr. Zerbini fazia o primeiro transplante de coração em São Paulo, o cirurgião Gilson Braga reimplantava a mão da menina Cristiane Porreca, de dois anos, no Hospital São Francisco Xavier, no Estado do Rio. Mas o hospital onde o Dr. Braga fez o reimplante não é um Hospital das Clínicas de São Paulo. O São Francisco Xavier é uma casa velha construída em 1810. Seus dois andares tem 65 leitos, mas não podem ser chamados de ambulatórios. Os quartos são forrados de tapumes de madeira compensada e jornais velhos substituem os vidros quebrados das janelas. A habilidade do cirurgião, numa enfermaria onde costuma faltar gesso para tratamento de fraturas e soro antitetanico, permitiu reconstituir todos os vasos sanguineos da mão, decepada quando a menina Cristiane caiu de um carro em movimento.” Revista Veja Primeira Publicação

Eu nasci em vinte e cinco de março de 1990, pelas mãos do meu próprio pai, assim como acho que todos os meus irmãos também e muita gente nessa cidade, mas esse pequeno texto resume toda a minha memória dele. Não que eu estivesse presente lá quando tudo aconteceu, mas por ele ter falecido no dia dezenove de março de 1995, minha relação com ele foi cortada abruptamente e eu não consigo nem sei lembrar o pai carinhoso que as pessoas dizem que ele foi. Na verdade eu quase não me lembro de nada além do que as pessoas que o conheceram dizem sobre ele, e sempre é sobre o DR. Gilson Braga, o ótimo médico, que mesmo em um hospital precário como diz a reportagem, fez mais pela cidade de Itaguaí do que o batalhão de médicos e enfermeiras que são pagos por esse ‘prefeito’ são capazes de fazer hoje em dia. Eu não sei muito o que falar sobre meu pai, vejo a relação e ouço as histórias que outras pessoas contam e tento ao máximo me relembrar daquela pessoa que sem a qual eu não estaria aqui e eu não seria quem sou, mas é difícil. Por muito tempo culpei outras pessoas e outras situações por não lembrar bem dele, mas demorou muito para eu entender que com apenas quatro anos não há muito o que o cérebro consiga armazenar, ou lembrar no meu caso. Muitas coisas mudam e mudaram nesses dezenove anos, algumas pra melhor, outras pra pior, mas todos os meus momentos eu tento lembrar de quem ele pode ter sido, além do médico, além do cara que tinha caixas e mais caixas de doce no escritório e que encantava todas as crianças da família ou da cidade, crianças essas que já tem suas próprias famílias e historias pra contar.
Sei que muita gente o conheceu, e muitos tem várias histórias e coisas boas a dizer sobre ele. Mas eu não consigo, eu tento e tento me lembrar, e às vezes vem aqueles flashes, eu usando mascara cirúrgica fingindo que um dia seria médica como ele, não uma médica qualquer que só está atrás do dinheiro como uma grande parcela dos médicos de hoje em dia, mas uma médica de verdade, que seguisse o juramento de atender a todos, "Eu, solenemente, juro consagrar minha vida a serviço da Humanidade. 
Darei como reconhecimento a meus mestres, meu respeito e minha gratidão. 
Praticarei a minha profissão com consciência e dignidade. 
A saúde dos meus pacientes será a minha primeira preocupação. 
Respeitarei os segredos a mim confiados. 
Manterei, a todo custo, no máximo possível, a honra e a tradição da profissão 
médica. 
Meus colegas serão meus irmãos. 
Não permitirei que concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou sociais intervenham entre meu dever e meus pacientes. 
Manterei o mais alto respeito pela vida humana, desde sua concepção. Mesmo sob ameaça, não usarei meu conhecimento médico em princípios contrários às leis da natureza. 
Faço estas promessas, solene e livremente, pela minha própria honra."
. Era assim que eu gostaria de ter sido, como meu pai.
Hoje sabemos como isso faz falta, talvez esse não seja o texto original do juramento de Hipócrates, mas é uma de suas versões adotadas atualmente, e que se paramos para ler veremos que há muito tempo não vemos médicos dessa forma. A primeira preocupação dos médicos é o salário no fim do mês e não a saúde de seus pacientes. É só ir pro hospital público mais próximo de você que perceberá isso.
Mas a questão aqui não é a precária saúde medica no Brasil e principalmente em Itaguaí, mas sim a falta que os bons médicos fazem, a falta que o meu pai faz. Não sei como escrever um texto carinhoso sobre as maravilhas de ter Gilson Braga como pai pois não há como adquirir carinho pelas histórias que ouvimos, mas eu tenho respeito e admiração pela pessoa que ele foi, não tanto pelo homem, mas muito pelo médico e pelo ser humano. Há muito me acostumei com a frase ‘Ah, se Dr. Gilson estivesse aqui’, mas ainda não consegui entender bem a falta dele, a saudade que eu sinto de quem mal conheci, a dor que o dia dezenove carrega apenas por ser o dia em que ele morreu, talvez quando alguém me perguntar ‘quem você gostaria de ter conhecido? Algum famoso, vivo ou morto’ eu diria meu pai, pois de alguma forma e pra algumas pessoas ele foi e é muito famoso e talvez eu tivesse a chance de conhecê-lo e de falar coisas que ficam entaladas na garganta, coisas como ‘oi pai, senti saudades, que bom que está aqui’.

Enfim, apesar de não lembrar, sinto saudades. Dezenove anos de saudades.

Três de Março de 2014


Quando perdemos alguém, temos uma vontade incontrolável de voltar no tempo, de viver todos aqueles momentos que passamos juntos. De ouvir o riso da pessoa novamente, de ouvir a voz. As brincadeiras. Parece que tudo aquilo passou despercebido enquanto vivíamos nossas vidas e o mínimo dos detalhes não era relevante o suficiente para chamar nossa atenção. Mas uma dessas pessoas que perdemos era especial, ela cativava a todos, inclusive aqueles que não percebem muito o mundo ao seu redor.
Minha tia Cristina era uma dessas pessoas, e me incomoda usar o verbo no passado porque pra mim ela sempre foi e sempre estará presente, pois como comigo e como com todas as pessoas que passaram pela vida dela, ela marcou, ela fez presença, sua alegria era contagiante e sua dor mobilizou até o mais duro dos corações.
É comum que quando alguém morre todas as lembranças passam a ser boas, afinal de contas ninguém quer falar mal de um falecido, mas isso não se aplicaria a minha tia. Ela era sim uma pessoa que cometeu algumas falhas e fez alguns erros ao longo do caminho, mas mesmo apesar deles ou até por causa deles, ela era uma mulher admirada. Ela é uma mulher admirada. O tipo de pessoa que você lembra dos risos, das brincadeiras e até do som da voz se procurar bem na memória. Ela ajudava a quem precisava, e ajudou também a quem não precisava mas ela se sentia responsável. Ela teve dores e passou por sofrimentos como todos nós, mas o que a diferenciava de nós era a alegria. Contagiante de verdade. Uma mulher que fazia contagem regressiva para o seu aniversário mesmo depois dos 40. Que ficava feliz em receber visitas. Que se preocupava com as pessoas da família, até com aqueles que ela não demonstrava muito,  mas dava pra perceber o carinho.
Ter feito parte de sua vida me mudou, assim como eu acho que mudou a praticamente todos que a conheceram. Sua força, mesmo que as vezes ‘frágil’ diante de algumas dificuldades era inspiradora. Os erros que cometeu, cometeu por amor e não pelo amor dela e sim pelo dos outros. Ela amava demais. Se doava demais. E as vezes doía demais também. E mesmo depois disso tudo o que ela passou, ela ainda é uma das pessoas mais queridas que eu já conheci. Tenho certeza que qualquer pessoa que leia isso terá uma história carinhosa pra contar sobre ela, porque ela era especial. E dizem que quando a pessoa é realmente especial ela não nos deixa de verdade, ela segue em nossos corações, em nossas contagens regressivas, em nossas lembranças dos ótimos momentos que tivemos ao seu lado.
É muito ruim se dar conta das pessoas especiais que temos em nossas vidas só depois que elas se vão, mas essa minha tia, ahh, essa minha tia era especial ao nosso lado, na dúvida, é só lembrar de como se sentia ao lado dela, lembrar dos bons momentos e das risadas e das perguntas inesperadas que eram tudo o que você queria e precisava ouvir naquele momento.

Já se passaram sete anos sem vê-la, sete anos sem ouvir a contagem regressiva e toda a festa que ela fazia em todas as ocasiões. Sete anos sem sua ajuda e sua motivação e seu riso contagiante. Eu sei que a dor não passa, mas será que a saudade algum dia será aliviada?


                                               Foto:http://www.bubblews.com/news/1031440-the-feeling-of-missing-someone-you-care-about